Sobre a Escrita

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Tanto quanto escrever seus macabros livros de terror, Stephen King gosta igualmente de falar sobre o processo da escrita em geral. Seja em prefácios ou posfácios de suas obras, é um assunto no qual ele vira e mexe dá suas pinceladas. Parecia natural, portanto, que ele acabasse escrevendo uma obra de não-ficção justamente tratando do método de escrever.

Sobre a Escrita é uma mistura de autobiografia e manual para aspirantes a escritores. King começa contando suas origens, de como começou a se interessar pelas letras já na infância e como suas experiências pessoais o moldaram no autor que viria a ser. Embora grande parte dessas histórias já tivessem sido cobertas por sua biografia, é muito mais interessante ouvir essas mesmas histórias pela pena do próprio biografado, e toda essa parte biográfica, que serve como uma grande introdução, acabou sendo para mim a melhor parte do livro.

Quando entra nas dicas em si, embora mantenha o estilo de escrita pessoal, falando diretamente com o leitor como se fosse uma conversar informal, o que manteve o trabalho em alta foi muito mais esse estilo despojado e extremamente confessional e opinativo – não seria nenhum absurdo dizer que se trata de um livro totalmente com a cara do DELFOS – do que as próprias dicas em si.

Claro, muito disso pode ser porque eu ganho a vida escrevendo, e até já me aventurei no mundo da literatura com meu primeiro Cyrilivro, portanto o que ele fala não foi exatamente uma novidade, mas acredito que não. Acho que qualquer um que já tenha escrito um conto, uma redação escolar ou tese de faculdade já deve saber de muitas das coisas que ele fala, mesmo que instintivamente.

Contudo, partindo do princípio de que essas coisas não são tão óbvias assim, aí o negócio já ganha ares mais interessantes para quem estiver realmente a fim de pegar umas dicas com um dos autores mais prolíficos e vendidos do século XX. Trata de coisas como criar uma rotina para escrever e ater-se a ela, uma meta de páginas por dia (que deve obrigatoriamente ser cumprida), criar uma primeira versão da obra só para você e apenas depois que estiver toda no papel submetê-la a opiniões de terceiros e por aí vai.

Também dá dicas mais específicas como não rebuscar demais o vocabulário só para querer parecer chique, escrever com as palavras que você usa e conhece, ter um bom domínio de gramática e por aí vai. Algumas das dicas são realmente úteis, outras você pode discordar (divirjo dele na questão da trama. Ele diz que ela não deve ser planejada e fluir livremente. Eu, particularmente, gosto de ter mais controle sobre os elementos da história que estou contando) e algumas outras parecem ser muito mais específicas da língua inglesa e não se aplicariam tão bem em outros idiomas, como o nosso bom e velho (e muito mais complicado) português.

No final, ainda dá um exemplo prático de como revisar e refinar um texto utilizando um trecho de seu conto 1408 na primeira versão e conta como o processo de terminar o próprio Sobre a Escrita (o livro foi lançado originalmente em 2000) o ajudou a superar o atropelamento que quase o matou em 1999. As páginas em que ele relata o acidente e o processo de socorro têm uma tensão digna de suas melhores histórias fictícias.

Para concluir, ainda coloca ao final duas grandes listas de livros que ele leu e gostou no período em que começou e escrever a obra até 2009 (essa segunda lista entrou em edições revisadas posteriores à publicação original), pois, como salienta, para escrever não basta apenas sentar a bunda na cadeira e mandar brasa, é preciso também ler muito. E o gosto de King é bastante eclético, indo de Neil Gaiman a Kurt Vonnegut.

No fim das contas, Sobre a Escrita, apesar de curto, acaba sendo um daqueles livros dois-em-um, metade autobiografia, metade manual de escrita. Cumpre as duas funções muito bem, seja lendo o mestre do terror contar com suas próprias palavras determinadas passagens de sua vida e suas opiniões próprias sobre seu ofício, seja pegando umas dicas com um cara pra lá de bem sucedido sobre a arte que domina. Seja qual for o viés que você queira encarar a leitura, ela é igualmente ótima.

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Nota
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Carlos Cyrino
Formado em cinema (FAAP) e jornalismo (PUC-SP), também é escritor com um romance publicado (Espaços Desabitados, 2010) e muitos outros na gaveta esperando pela luz do dia. Além disso, trabalha com audiovisual. Adora filmes, HQs, livros e rock da vertente mais alternativa. Fez parte do DELFOS de 2005 a 2019.
sobre-a-escritaPaís: EUA<br> Ano: 2000 (EUA) / 2015 (Brasil)<br> Autor: Stephen King<br> Número de Páginas: 256<br> Editora: Suma de Letras<br>